quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Comboios e eventos - o que diz a legislação?

Recentemente a PRF autuou vários motociclistas e ciclistas, no Ceará, por, supostamente, estarem realizando evento em rodovia, sem autorização. Veja aqui.

Os motociclistas e ciclistas do Brasil se desesperaram.... Quer dizer que não podemos mais realizar passeios ou viagens de moto, em grupo? Não poderei mais pedalar com minha mulher? E onde fica o meu direito de ir e vir? É o fim do motociclismo, exageraram alguns...

A base para a autuação foi o art. 174 do Código de Trânsito Brasileiro, existente desde 1997, que diz, resumidamente, o seguinte: Promover, na via, eventos organizados, ou deles participar, como condutor, sem permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via. 

Este artigo sofreu uma pequena alteração, em 2014, e passaram a vigorar as novas penalidades, bem mais salgadas, tanto para os participantes quanto para os organizadores. Multa de dez vezes (eram cinco), suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo, além da medida administrativa de recolhimento da habilitação e remoção do veículo. Em caso de reincidência, a habilitação será cassada (art. 263, II do CTB). Veja o CTB aqui.

A questão que se coloca é: todo passeio ou viagem, de motos, em grupo (comboio), é considerado um evento organizado? A partir de quantas motos um passeio ou viagem é considerado evento? Em que situações, no trânsito, um comboio de motos, na via, pode ser considerado um evento organizado?

A definição de evento é ampla. Vem da palavra latina eventus, que significa acontecimento. Pode ser de qualquer categoria, entre elas, social. Na maioria das vezes os passeios de moto (ou viagens), em grupo, visam o contato com amigos, conhecer e interagir com novas pessoas, trocar experiências, se divertirem, etc. Ou seja, estes passeios têm fins sociais, portanto, podem ser considerados eventos! Mas esses eventos não acontecem na via. Acontecem no destino! Mas pode ser que, para que estes eventos ocorram, dependendo da forma como o comboio se desloca, pode sim ser caracterizado como evento em vias terrestres. 

Ou seja, comboio, com as motos muito próximas umas das outrasformando uma fila, pode sim ser caracterizado como evento na via. Depende de como está sendo conduzido. E, por esta razão, foi aplicada a multa aos motociclistas do Ceará. O CTB se refere a eles como carreata (anexo I do CTB). Antes que achem estranho, carreata é o deslocamento na via, em fila, de veículos automotores com o mesmo itinerário. Segundo o CTB, em sinal de regozijo, de reivindicação, de protesto cívico ou de uma classe (veja detalhes mais abaixo). Para este tipo de comboio é necessário a autorização .

Mas, se os motociclistas não tiverem autorização, qual penalidade deve ser aplicada? Do art. 174 ou do 253-A, ambos do CTB?

Inquestionável que os comboios, como são feitos, com muitas motos e muito próximas uma das outras (em fila), interferem sobremaneira no trânsito, interrompendo, restringindo, ou perturbando a circulação dos demais usuários da via. Mas os motociclistas resistem em admitir que estão errados. Pensam ser os donos das vias! Em alguns comboios tem até coreografia, com os motociclistas tirando a mão do guidom e girando o braço em torno do cotovelo e, em alguns momentos, mudarem de posição na fila. Um espetáculo, dizem eles. 

Se interferirem de forma deliberada, a penalidade deve ser a do art. 253-A do CTB. Se interferirem, mas não de forma deliberada, a penalidade deve ser a do art. 174 do CTB.

Comboio de Brasília ao Rio, com escolta da PRF - o transtorno foi enorme
Agora, se os comboios NÃO perturbam, nem restringem nem interrompem a livre circulação de veículos e pedestres nem colocam em risco sua segurança, NÃO há como aplicar qualquer penalidade. Mas isto só acontece nos comboios cujos motociclistas respeitam as demais regras de circulação e conduta previstos no capítulo III do CTB, principalmente mantendo a distância de segurança (veja como aqui)! Mas isto é raríssimo...

A distância de segurança, recomendam os especialistas, é aquela que se percorre em 2 segundos. Para se calcular esta distância, basta dividir a quilometragem por 1,8 e terá a distância em metros. Exemplo: se estiver a 90km/h > 90 dividido por 1,8 é igual a 50. Portanto, a distância de segurança, segundo os especialistas, é 50m. Poucos obedecem isto, é verdade. 

Todos sabemos que a maioria dos comboios descumprem estas normas, principalmente dos arts. 29, I e II e o parágrafo único do art. 30, do CTB. Contudo, se isso ocorrer, sem qualquer interferência no trânsito, o que é difícil, há punição prevista no próprio CTB. 

Comboio de motociclistas passeando no RJ - 2012
Por fim, bastam dois motociclistas para que seja caracterizado um comboio. Mas não evento! Agora, se estiverem muito próximos um do outro, a ponto de interferirem no trânsito, poderão ser autuados. Creio que número superior a quatro motos, muito próximas uma da outra, seja mais fácil o agente entender que seja evento... Mas não importa o número de motos e sim a distância entre elas! Ou seja, saiam com quantas motos quiserem. Apenas mantenham distância segura um do outro e respeitem as demais regras de circulação e conduta previstas no CTB. 

Quanto ao direito de ir e vir, não há interferência alguma. Você pode ir e voltar, mas respeitando a lei. Se não respeitar, também voltará. Mas sem a moto, que será recolhida, caso seja pego pela fiscalização, o que é MUITO difícil porque ela quase não existe...

Quanto aos passeios de bike, nota-se que há o descumprimento dos artigos 43, I, 62 e 188 do CTB e, além disso, é, declaradamente, um evento (passeio), mesmo que mantenham distância de segurança um dos outros, é notório que, deliberadamente interrompem, perturbam e restringem a circulação dos demais usuários, devendo-se, portanto, aplicar a penalidade do art. 253-A, com a remoção da bicicleta até que a multa seja paga. 
Importante saber o que diz a legislação, na qual baseamos nossa análise:

Inicialmente, o CTB prevê a circulação de veículos em grupos (§ 1º do art. 1º do CTB). E que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos (§ 2º do art. 1º do CTB).

O art. 29 preconiza que, I, a circulação far-se-á pelo lado direito da via e, II, que o condutor deverá guardar distância de segurança lateral e frontal entre o seu e os demais veículos, considerando-se, no momento, a velocidade e as condições do local, da circulação, do veículo, etc. A tal da distância de segurança que nos referimos acima.


O parágrafo único do art. 30 diz que os veículos mais lentos, quando em fila, deverão manter distância suficiente entre si para permitir que veículos que os ultrapassem possam se intercalar na fila com segurança. Ou seja, devem permitir que outros veículos, qua não participem do comboio, possam se infiltrar no comboio para fazerem conversão, adentrar num estacionamento, etc. Caso a distância não for suficiente, impedindo a intercalação, restará caracterizada a interferência na circulação dos demais usuários da via.


O art. 174 do CTB diz que promover, na via, competição, eventos organizados, exibição e demonstração de perícia em manobra de veículo, ou deles participar, como condutor, sem permissão da autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via, é infração gravíssima, punida com multa, recolhimento da habilitação e remoção do veículo. As penalidades serão aplicadas aos promotores do evento e aos condutores. Pode haver, inclusive, em caso de reincidência, a cassação da habilitação (art. 263).


Já o artigo 253-A do CTB diz que, usar qualquer veículo para, deliberadamente, interromper, restringir ou perturbar a circulação na via, sem autorização, constitui infração gravíssima, com penalidade de multa (vinte vezes), suspensão do direito de dirigir por doze meses e remoção do veículo. Aos organizadores da conduta, a multa é agravada em sessenta vezes e, no caso de reincidência, a multa dobra! Atenção: a penalidade se aplica a pessoas físicas ou jurídicas! Atentem também para o fato de que Moto Clubes são associações, pessoas jurídicas de direito privado.

Interessante notar que, embora a situação prevista no art. 253-A seja, em tese, mais nociva para o trânsito que a do art. 174, porque houve dolo, não há possibilidade de cassação da habilitação, em caso de reincidência. Erro da Lei? Provável.

Há também um manual de procedimentos para autorização, elaborado pela PRF, que começa assim: A realização de eventos de qualquer natureza que possam interferir na segurança do trânsito nas rodovias federais prescinde, por força dos dispositivos legais previstos no CTB, de fornecimento de Autorização prévia por parte da PRF.

Nele, define-se evento móvel como "sendo aquele que se desenvolve com deslocamento físico do evento ao longo da via de trânsito, como passeatas, competições esportivas, romarias, etc." Claro que, no 'etc.' se inclui as carreatas, definidas no CTB como "deslocamento em fila na via de veículos automotores em sinal de regozijo, de reivindicação, de protesto cívico ou de uma classe." (comboio = veículos em fila).

Nas palavras regozijo e classe estão incluídos os passeios de moto em grupo. Regozijo está associado a  prazer, alegria, àquilo que é positivo. Classe pode significar, também, um grupo de pessoas com os mesmos interesses... E passeios de motos em grupo, causam, à classe dos motociclistas participantes, muito prazer. É o que sempre se diz, não é verdade? 

Nesse manual também há vários trechos que indicam quando um passeio em grupo pode ser considerado evento. A tônica é a seguinte: Interferência na livre circulação dos veículos! 

Selecionei alguns:
  • O objetivo do manual é padronizar os procedimentos relativos ao fornecimento de autorização de eventos, quando passíveis de causar interferência significativa no fluxo viário ou prejudicar a segurança dos demais usuários das rodovias;
  • Se o evento não autorizado, ou em desacordo com a autorização, ocorrer fora dos limites da faixa de domínio não edificáveis, interferir na livre circulação de veículos e pedestres na rodovia, ou colocar em risco sua segurança, incorrerá em descumprimento do art. 174 do CTB. Tanto os responsáveis quanto os participantes serão penalizados. (item 32 do Manual)
  • Se o evento ocorrer dentro dos limites das faixa de domínio e não edificáveis, sem autorização ou em desacordo com ela, independente de interferir ou colocar em risco a segurança dos usuários, haverá o descumprimento do art. 174 do CTB! Tanto os organizadores quanto os participantes serão penalizados. (itens 33 e 34 do Manual)
  • Quando o evento organizado ocorrer sobre a via, deliberadamente interrompendo, restringindo ou perturbando a circulaçao, aplica-se a penalidade do art. 253-A aos organizadores e aos participantes. (itens 35 e 36 do Manual)
  • No campo de Observações do Auto de Infração, o agente deverá circunstanciar a situação, tipo: se o e evento foi autorizado, se foi realizado dentro da faixa de domínio, que interferência gerou no trânsito ou quaisquer outras informações. 
  • Dependendo da situação, podem ser aplicadas as penalidades previstas nos artigos 174 e 253-A do CTB. Neste último, se os integrantes estiverem utilizando o veículo para, deliberadamente, interromper, restringir ou perturbar a circulação na via.
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Atualização 19/01/17, 17:48: 


Está circulando, nas redes sociais, a imagem de um documento, sem assinatura, atribuído ao Núcleo de Operações Especiais da PRF, que diz que não há óbice ao deslocamento de motociclistas, em grupo, em rodovias, se não possuir o caráter de evento com fins lucrativos.


Contudo, nem a Lei, nem muito menos o Manual da PRF, fazem esta ressalva. 


Pode até ser conveniente para com os interesses dos grupos de motociclistas, mas não tem valor legal, pelo menos até que a CGO venha concordar com ele, o que duvidamos, pois vai de encontro à Lei.

Importante esclarecer que o item 76 do MPO-056, que é o manual da PRF sobre o assunto, diz que as dúvidas serão dirimidas pela Coordenação-Geral de Operações - CGO. Portanto, o NOP/PRF não é o núcleo competente.

Diante disto, cautela com este documento, que, como disse, é apócrifo.

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Atualização 22/01/17: O Chefe da Divisão de Fiscalização de Trânsito e Transportes, Sr. Anderson Frazão gomes Brandão, assinou Nota Técnica, em 20/01, estabelecendo procedimentos de fiscalização de eventos móveis. Mas a questão não ficou bem esclarecida. Veja aqui.

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Contribuições são bem-vindas! Não precisam concordar com a análise. Mas as discordâncias, fundamentadas, são sempre bem-vindas!

Sujeito a atualizações...

8 comentários:

  1. Bom dia, Celso. Em primeiro lugar, parabéns pela análise!
    Bem, eu acredito que no caso do Ceará, era sim um evento, pois, ao que tudo indica, era um passeio oficial e promovido pelo MC. Teoricamente então, qualquer passeio oficial, de MC registrado, deveria ser enquadrado como “evento”. Mas como fica o caso de um passeio com até umas 4 ou 6 motos??? Deveriam seguir toda a tramitação? Acho que a melhor solução seria o estabelecimento de um “simples”, tal como acontece no sistema tributário, para essas situações.
    Em todo caso, voltando ao caso do Ceará, e agora indo um pouco contra o que você defende, que é a distância de segurança. Já pensou um bonde com 100 motos, cada uma mantendo uma distância de 50m uma da outra? Daria uma fila de 5Km… Os motoristas teriam paciência para enfrentar isso? Todos nós sabemos que as duas rodas são desrespeitadas a todo instante. Essa situação também não geraria estresse demasiado?

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    1. Obrigado pelo comentário Fernando.
      Em passeios ou viagens de poucas motos, mantenham distância de segurança. Não precisa ser de 50m, mas não pode interferir no trânsito. Deixem espaço para que veículos possam se intercalar.

      Passeios de 100m, e até em número menor, creio que acima de dez, vão precisar de autorização. E, dependendo da situação, tenho minhas dúvidas se conseguirão, porque, neste caso (100), interferem, muito, no trânsito.

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    2. Sem dúvida! Eu acredito que em bondes maiores, com 10 ou mais motos, a "solução" vai ser aplicar o art. 99 ou 100 do CTB, se não me engano, que estabelece o comprimento máximo de um veículo (no caso dos artigos, de veículos de carga), também para um comboio de motos.
      Sou um pouco mais "agressivo" que você no que se refere à distância mínima, e acho que 3 ou 4 motos "caberiam" no espaço regulamentar de 19.80m, desde que mantidas as condições de condução com segurança (olhar longe, motos intercaladas, atenção máxima). Aí, tomando como exemplo o caso do Ceará, mesmo assim seriam umas boas "carretas compostas por 4 motos" a se ultrapassar, mas o bonde ocuparia em torno de 1Km (25 "carretas" com 4 motos com espaço de uma "carreta" entre elas).
      Enfim, tudo se resolveria se houvesse atenção e respeito de todos: motociclistas, motoristas, autoridades...

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    3. Fernando, não se esqueça que cada moto é um veículo, conduzido por apenas uma pessoa. Não confunda com combinação de veículos.

      Sabe o que eu sempre pergunto para todos que gostam de andar em comboio? Por que andar engatado um no outro??? Comboios de trem andam engatados... Não vejo nenhuma necessidade de motos ficarem tao próximas umas das outras.

      Mas enfim, é minha opinião. Veja aqui: http://www.demotocomdestino.com/2014/03/distancia-entre-motos-em-comboios.html

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  2. Porque não se aplica a lei as motoristas promovidas pelo presidente da República, isso é hipocrisia pura. Já sei vão dizer que ele tem a autorização, se eu ou qualquer outro cidadão solicitar a autorização para fazer uma motorista com milhares de moto a polícia vai autorizar? Cambada de hipócritas. Sobre o texto está claro que você não gosta de motociclistas e qualquer desculpa serve para nós proibir de exercer o nosso direito de livre circulação.

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    1. Prezado anônimo. Qualquer um pode exercer seu direito de livre circulação. Mas, DENTRO da lei. Sobre os eventos cheio de ilegalidades promovidos pelo presidente prefiro não comentar.

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